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CENTRO DE FORMAÇÃO CLENARDVS
O Centro de Formação de Professores CLENARDVS, credenciado, desde Março de 2018, pelo Conselho Científico-Pedagógico de Formação Contínua e tem organizado inúmeros congressos, colóquios e acções de formação acreditadas.
As suas áreas prioritárias de formação estão estritamente ligadas aos objectivos da Associação, devendo desenvolver-se, fundamentalmente, na área das línguas grega e latina; da Epigrafia; da Literatura; da Etimologia; da História e Arqueologia e da herança material móvel, através do conhecimento dos Museus Arqueológicos e imóvel (Sítios Arqueológicos).
MENSIS MARTIVS

Ara a Marte – Datação:I d.C. – II d.C. – Época Romana – Torre de Palma – M(arcus) . COEL[IVS] / CEL[S]VS / MARTI / A(nimo) L(ibens) Tradução: Marcus Coelius Celsus, a Marte, de bom grado. (José d’Encarnação)
Março, era o primeiro mês do ano, no antigo calendário romano. No mês de Março dava início à vida agrícola e marcava também as navegações e o retorno às campanhas militares. O mês celebrava o deus Marte e a ele deve o nome.
Baixando um pouco a lança e o escudo, chega, Ó Marte. / Solta, ó Guerreiro, do elmo a cabeleira. / Talvez perguntes por que o poeta invoca Marte: / do mês que eu canto o nome vem de ti. / Tu próprio vês co’a mão Minerva fazer guerras; / mas nas artes domésticas descansa? / Ao seu exemplo, marca o tempo de abaixar / os gumes; acha inerme o que fazeres. (…)
Que as Calendas de Março eram do ano as primeiras, / na mente os sinais podes perceber. / O loureiro que o ano inteiro ornou os flâmines / é tirado, e são postas novas folhas; / verdeja, então, de Febo a árvore nos umbrais, / e também nos portões da velha Cúria. (…)
Porque o Inverno enregelante, enfim, termina, / e ao morno sol derrete a caída neve, / a folhagem retorna às desbastadas árvores, / crescem nas vinhas brotos suculentos, / o mato, há muito oculto, agora ergue-se aos ventos / e acha fértil caminhos escondidos. / Fecundo agora é o campo, os rebanhos procriam, / num galho a ave prepara abrigo e ninho. / Tempos fecundo as latinas mães cultuam, / o parto delas tem dever e votos.[1]
(vv. 1-8;135-140 e 235-238)
Bellice, depositis clipeo paulisper et hasta, / Mars, ades et nitidas casside solve comas. / forsitan ipse roges quid sit cum Marte poetae: / a te qui canitur nomina mensis habet.[2]
Ó guerreiro, deixando um pouco o escudo e a lança, / Ó Marte, Vem e solta a cabeleira brilhante do elmo. / Talvez tu próprio perguntes o que tem poeta com Marte: / o mês que canto tem o teu nome.
neu dubites primae fuerint quin ante Kalendae / Martis, ad haec animum signa referre potes. / laurea flaminibus quae toto perstitit anno / tollitur, et frondes sunt in honore novae; / ianua tum regis posita viret arbore Phoebi; / ante tuas fit idem, Curia prisca, fores.[3]
E para que não duvides que as Calendas de Março foram as primeiras, / podes prestar atenção aos seguintes sinais. / O loureiro que todo o ano permaneceu com os flâmines / é tirado, e novas folhas surgem em honra; / Então, verdeja a porta do rei com a árvore de Febo; / o mesmo se fazia diante das portas na velha Cúria.
quid quod hiems adoperta gelu tum denique cedit, / et pereunt lapsae sole tepente nives; / arboribus redeunt detonsae frigore frondes, / uvidaque in tenero palmite gemma tumet;[4]
Porque então, por fim, termina o inverno coberto de gelo / e desaparecem as neves derretidas com o tépido sol / e voltam às árvores as folhas cortadas pelo frio / e cresce o rebento húmido no raminho tenro da videira.
[1] In Ovídio – Os Fastos – tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, Autêntica CLÁSSICA, vv. vv. 1-8;135-140 e 235-238.
[2] Ovídio – Os Fastos – vv.1-4.
[3] Idem, ibidem – vv.135-140.
[4] Idem – vv.235-238.
FESTIVAIS ROMANOS PÚBLICOS E PRIVADOS
MENSIS MARTIVS
MATRONALIA

Reverso de áureo representando Juno – IVNONI LVCINAE – de pé entre duas crianças e segurando uma outra nos braços.[1]
As Matronalia eram festas em honra de Juno Lucina, que se celebravam a 1 de Março. O culto de Juno Lucina é muito antigo e era celebrado inicialmente, antes da edificação do templo sagrado, nos bosques – lucus -, daí provavelmente o epíteto Lucina. Juno Lucina presidia aos partos e neste dia celebra-se o nascimento de Rómulo e Remo.
O culto consistia na deslocação que as mulheres casadas faziam ao templo de Lucina, no monte Esquilino, e ofereciam flores e rogavam pela prosperidade do seu casamente e as que estavam grávidas suplicavam por um parto feliz. Quando regressavam a casa, as mulheres eram recebidas, agora, num ambiente mais restrito e familiar, de forma calorosa e afectuosa.
A presença de Juno Lucina, no áureo de Faustina Augusta, não é de estranhar, pois gerou 13 filhos, ao longo de trinta anos de casamento, com Marco Aurélio.
Terêncio, em Andria, suplica ajuda a Juno Lucínia, quando simula entrar em trabalhos departo:
Glycerium. (intus) Iuno Lucina, fer opem, serva me, obsecro.[2]
Glicera – (dentro de casa) Ó Juno Lucina, ajuda-me, ampara-me, por favor!
Horácio, na Ode 8, do Livro III, refere-se ao dia 1 de Março e à celebração de um sacrifício divino neste dia.
Martis caelebs quid agam Kalendis, / quid velint flores et acerra turis / plena miraris positusque carbo in / caespite vivo[3]
“Que faço eu, um solteiro, nas calendas de Março, / o que significam as flores, a caixa de incenso, / e o carvão pousado sobre o verde tufo, / tudo isso perguntas admirado,”[4]
N’ Os Fastos, Livro III, Ovídio refere-se de forma clara ao culto a Juno Lucina.
‘Si licet occultos monitus audire deorum / vatibus, ut certe fama licere putat, / cum sis officiis, Gradive[5], virilibus aptus, / dic mihi matronae cur tua festa colant.’
adde quod, excubias ubi rex Romanus agebat, / qui nunc Esquilias nomina collis habet, / illic a nuribus Iunoni templa Latinis / hac sunt, si memini, publica facta die.
ferte deae flores: gaudet florentibus herbis / haec dea; de tenero cingite flore caput: / dicite ‘tu nobis lucem, Lucina, dedisti’: / dicite ‘tu voto parturientis ades.’ / siqua tamen gravida est, resoluto crine precetur / ut solvat partus molliter illa suos.[6]
Soma também que onde o romano rei escrutava, / na colina chamada hoje Esquilina, / ali um templo a Juno as mulheres latinas, / se me lembro, erigiram nesse dia. (…)
Trazei flores à deusa. Ela gosta de flore; / cingi com flores novas a cabeça. / Dizei-lhe: «Tu, Lucina Juno, à luz nos deste». / Dizei-lhe: «Atende os votos das gestantes». / Se grávida está alguma, ore co’a coma[7] solta / para que suavemente ocorra o parto.”[8]
[1] Faustina Junior AV Aureus. Roma, 161-76 DC. FAVSTINA AVGVSTA, busto drapeado à direita / IVNONI LVCINAE, Juno de pé à esquerda entre duas crianças e segurando uma criança nos braços.
[2] Terêncio, Andria, v.473.
[3] Horácio, Odes 3, 8.v1-4.
[4] Horácio, Odes, tradução de Pedro Braga Falcão, Livro Cotovia, 2008.
Na ode 3, Horácio prepara um sacrifício, num dia em que as matronas romanas os faziam a Juno Lucina. O equívoco é desfeito, pois caíra de uma árvore e não celebrava os dias festivos Matronalia, mas sim o facto de ter sido salvo da morte.
[5] Sobrenome de Marte.
[6] Ovídio – Os Fastos III– vv.167-170; 245-248; 253-256.
[7] Cabelos.
[8] Ovídio – Os Fastos – tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, Autêntica CLÁSSICA, vv.167-170; 245-248; 253-256.
NAVIGIVM ISIDIS

Fresco com o Navigium Isidis, localizado no Sacrarium do Templo de Ísis em Pompeia, exposto no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.[1]
No dia 5 de Março, tinha lugar a festa em honra de Ísis designada por Navigium Isidis.
O rito consistia de uma procissão em direcção ao porto, cujos participantes iam adornados de exóticas vestes, apresentando-se alguns portando tochas. Os Pastophori[2], de cabelos rapados, vestidos imaculadamente de branco, carregavam imagens dos deuses egípcios e uma urna contendo água sagrada do rio Nilo. O cortejo era acompanhado de cânticos, ao som de flautas e do sistro e estancavam junto à orla do mar. Aqui, aguardava-os uma barca e, depois de libações com leite e carregada de oferendas, lançavam-na e deixavam-na à merce das ondas. Quando já, no alto mar, deixavam de a ver, o cortejo regressava ao templo, onde os sacerdotes oravam pelo imperador e pelo povo. A turba, então, levando flores e grinaldas, acercava-se da estátua argêntea da deusa e beijava-lhe os pés.
Este ritual ficou imortalizado no Burro de ouro, Asinus aureus ou Metamorphoseon libri, de Apuleio, cujo excerto em latim transcrevemos, bem como a tradução de Delfim Leão.
16.1 Ad istum modum vaticinatus sacerdos egregius fatigatos anhelitus trahens conticuit. 2. Exin permixtus agmini religioso procedens comitabar sacrarium totae civitati notus ac conspicuus, digitis hominum nutibusque notabilis. 3. Omnes in me populi fabulabantur: “Hunc omnipotentis hodie deae numen augustum reformavit ad homines. 4. Felix hercule et ter beatus, qui vitae scilicet praecedentis innocentia fideque meruerit tam praeclarum de caelo patrocinium ut renatus quodam modo statim sacrorum obsequio desponderetur.” 5. Inter haec et festorum votorum tumultum paulatim progressi iam ripam maris proximamus atque ad ipsum illum locum quo pridie meus stabulaverat asinus pervenimus. 6. Ibi deum simulacris rite dispositis navem faberrime factam picturis miris Aegyptiorum circumsecus variegatam summus sacerdos taeda lucida et ovo et sulpure, sollemnissimas preces de casto praefatus ore, quam purissime purificatam deae nuncupavit dedicavitque. 7. Huius felicis alvei nitens carbasus litteras [votum] <auro> intextas progerebat: eae litterae votum instaurabant de novi commeatus prospera navigatione. 8. Iam malus insurgit pinus rutunda, splendore sublimis, insigni carchesio conspicua, et puppis intorta chenisco, bracteis aureis vestita fulgebat omnisque prorsus carina citro limpido perpolita florebat. 9. Tunc cuncti populi tam religiosi quam profani vannos onustas aromatis et huiusce modis suppliciis certatim congerunt et insuper fluctus libant intritum lacte confectum, donec muneribus largis et devotionibus faustis completa navis, absoluta strophiis ancoralibus, peculiari serenoque flatu pelago redderetur. 10. Quae, postquam cursus spatio prospectum sui nobis incertat, sacrorum geruli sumptis rursum quae quisque detulerant, alacres ad fanum reditum capessunt simili structu pompae decori.[3]
16. 1. Foi desta forma que o notável sacerdote deu voz ao vaticínio; depois calou-se, fatigado pelo esforço, enquanto recobrava o fôlego. 2. Em seguida, juntei-me ao grupo dos fiéis e pus-me a acompanhar a marcha do sagrado cortejo. A cidade inteira me reconhecia e em mim se concentravam os olhares, designando-me com o dedo e com acenos de cabeça. 3. Entre a multidão, era eu o assunto de todas as conversas:
— A este, a vontade excelsa da deusa omnipotente fê-lo recuperar hoje a forma humana. 4. Que pessoa feliz esta e três vezes ditosa, a quem a pureza e fé da vida passada valeram, seguramente, um tão ilustre favor dos céus, a ponto, de uma vez operado de certa forma o seu renascimento, logo se dedicar ao serviço do culto sagrado!
5. Entretanto, no meio do tumulto das festivas celebrações, fomos avançando a pouco e pouco, até nos aproximarmos da orla do mar e chegarmos ao próprio sítio onde na véspera eu me detivera, quando ainda era um burro. 6. Nesse lugar, dispuseram as imagens divinas de acordo com o ritual. Encontrava-se lá um barco, construído com exímia arte e pintado em toda a extensão com variegados e admiráveis motivos egípcios. Então, o sumo-sacerdote pronunciou, com os castos lábios, orações particularmente solenes e procedeu à mais santa das purificações, valendo-se de uma tocha incandescente, de ovo e enxofre. Depois disso, invocou a deusa e consagrou-lhe a embarcação. 7. A brilhante vela deste afortunado navio tinha letras bordadas a ouro: essas letras exprimiam o voto de uma próspera retoma das travessias marítimas. 8. Já o mastro se aprestava, feito de madeira de pinho bem torneado, alto e brilhante, e a sua espectacular vigia concentrava a atenção geral. A popa era encurvada em forma de pescoço de cisne e resplandecia com o revestimento de folhas de ouro. Aliás, a quilha inteira, feita em madeira de tuia bem polida, exibia também um límpido brilho.
9. Nesse instante, toda a população, tanto os devotos como os não iniciados, amontoam à compita joeiras carregadas de substâncias aromáticas e de outras oferendas do mesmo tipo, ou então fazem sobre as águas libações de papa embebida em leite. Por fim, quando a embarcação estava carregada já de generosos presentes e de oblações propiciatórias, soltaram os cabos das âncoras e o navio foi confiado ao mar, impelido por uma brisa suave e especial. 10. Assim que, transposta determinada distância, o barco deixou de se mostrar com nitidez aos nossos olhos, os portadores dos objectos sagrados voltaram a pegar no fardo que cada um trouxera e meteram-se ao caminho, cheios de alegria, em direcção ao santuário, formando novamente um cortejo com idêntica dignidade.[4]
[1] Entre dois bustos de divindades fluviais há dois barcos de junco, no barco da esquerda está Isis a puxar com uma corda o barco à direita, no qual há uma caixa quadrada com um falcão pintado. Abaixo estão duas grandes cobras viradas para um cesto de vime com uma tampa cónica.
[2] Os Pastóforos compunham o colégio sacerdotal responsável pelo culto de Ísis.
[3] Apuleio, Asinus aureus, Livro 11, 16. A indicação dos versículos segue a tradução.
[4] Apuleio, O burro de ouro, tradução de Delfim Leão, Livros Cotovia, 2007.
EQVIRRINA MARTIS

Denário de prata – data de cunhagem: 88 aC[1]
No dia 14 de Março tinham lugar, de novo, pois já haviam acontecido a 27 de Fevereiro, os festivais de origem muito antiga, que segundo a tradição remontavam a Rómulo, em honra do deus Marte – Equirria. O culto consistia numa corrida de cavalos – *equi curria -, que acontecia no Campo de Marte.
Sex ubi sustulerit, totidem demerserit orbes / purpureum rapido qui vehit axe diem, / altera gramineo spectabis Equirria Campo, / quem Tiberis curvis in latus urget aquis; / qui tamen eiecta si forte tenebitur unda, / Caelius accipiat pulverulentus equos.[2]
“Quando o deus que transporta o dia em lesto carro / subir e mergulhar o sol seis vezes, / outras Equírrias tu verás no ervoso campo / que o Tibre com sinuosos cursos banha. / Mas, se acaso do rio as águas recobrirem-no, / o Célio poeirento acolhe os potros.”[3]
Durante a época Imperial, as Equírreas de Março foram perdendo a solenidade que tinham, acabando substituídas pelas Manularia, festividades também em honra de Marte.
[1] Anverso: Busto de Marte usando um capacete coríntio com crista, mostrado por trás, armado com uma lança e uma espada curta, cujo punho é visível sobre o ombro direito. Borda pontilhada.
Reverso: Victoria de biga galopa para a direita, segurando as rédeas na mão esquerda e uma coroa de flores na mão direita. Borda pontilhada.
Inscrição: CN. LENTVL. (Cneu Lentulus) – Gnaeus Cornelius Lentulus Marcellinus, questor 74 aC., pretor 59 aC., cônsul 56 aC.
[2] Ovídio – Os Fastos, Livro III– vv. 517-522.
[3] Soares, Maria Lia Leal – Ovídio e o poema calendário: Os Fastos, Livro II, o mês das expiações, São Paulo 2007.
MAMVRALIA

Mosaico dos Meses, Thysdrus, El Djem, Tunísia[1]
Os Mamuralia tinham lugar no dia 14 de Março e era um festival em honra de Marte “durante os quais era expulso Mamúrio Vetúrio, tido como o demónio do Inverno”[2]. Esta divindade enigmática é representada por Joannes Lydus, na sua obra do século VI, De mensibus (“Acerca dos Meses”), como um homem velho, chamado Mamurius, vestido com peles de animais e espancado com varas brancas, representado no mosaico da cidade romana de Thysdrus, na Tunísia. Ora este ritual popular pode simbolizar também o início das campanhas militares e o trabalho de construção dos escudos, feitos de peles de animais e emoldurados em robustas estruturas de madeira.
Mamúrio está também associado à construção de onze escudos, mandados fazer por Numa, semelhantes aos que o rei recebera de Júpiter, como garantia da salvação eterna de Roma. Ora, como forma de pagamento, Mamúrio pediu que fosse recordado no final dos cantos que os Sálios, fiéis depositários dos doze escudos e que anualmente em ritual, percorriam a cidade com danças e cânticos e executando movimentos guerreiros, batendo nos escudos.
Quis mihi nunc dicet quare caelestia Martis / arma ferant Salii Mamuriumque canant? (…) ecce levi scutum versatum leniter aura / decidit: a populo clamor ad astra venit. / tollit humo munus caesa prius ille iuvenca / quae dederat nulli colla premenda iugo, (…) tum, memor imperii sortem consistere in illo, / consilium multae calliditatis init: / plura iubet fieri simili caelata figura, / error ut ante oculos insidiantis eat. / Mamurius, morum fabraene exactior artis / difficile est, illud, dicere, clausit opus. / cui Numa munificus ‘facti pete praemia’ dixit: (…) / tum sic Mamurius: ‘merces mihi gloria detur, / nominaque extremo carmine nostra sonent.’[3]
“Quem hoje me dirá por que os sálios levam / de Marte as armas, e Mamúrio cantam? (…) Eis que, descendo mansamente no ar, u’escudo / cai: o clamor do povo chega aos astros/ Numa o apanha no chão; antes imola u’a rês / cuja nuca jamais fora jungida, (…) Lembrado que do escudo o império dependia, com muito engenho um plano arquitetou. / Ele manda fazer mais imagens iguais / para que os insidiosos olhos errem. / Mamúrio – se melhor no costume ou as artes, / é difícil dizer – findou a obra. / Recompensando-o, Numa disse: «Pede o prêmio.» (…) / Diz Mamúrio: «Que seja a glória a recompensa / e que meu nome soe ao fim do canto».[4]
Os Mamuralia com o tempo substituíram os segundos Equirria.
[1] Os três personagens que batem a pele esticada de um animal com suas varas estão realizando o rito muito antigo da «Mamuralia».
[2] Rodrigues, Nuno Simões, Mitos e Lendas da Roma Antiga, Livros e Livros, 2005.
[3] Ovídio – Os Fastos, Livro III– vv. 259-260; 373-376; 379-385; 389-390.
[4] Ovídio, Os Fastos, tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, Autêntica CLÁSSICA.
IDIBVS MARTIIS

Áureo de Bruto
No anverso, o busto de Brutus à direita, com a legenda BRVT IMP – L PLAET CEST (Brutus Imperator – Lucius Plaetorius Cestianus – Imperador Bruto – Lúcio Pletório Cestiano)
No reverso encontram-se as figuras do Píleo ou Chapéu da Liberdade – representando, possivelmente, que o assassinato foi para libertar a República da tirania ditatorial de Júlio César –, ladeado por duas adagas que representariam as usadas por Brutus e Caio Cássio Longino no assassinato de Júlio César. Abaixo, a inscrição EID . MAR (Eidibus Martiis – Nos Idos de Março)
ipsa virum rapui simulacraque nuda reliqui: / quae cecidit ferro, Caesaris umbra fuit.’ / ille quidem caelo positus Iovis atria vidit, / et tenet in magno templa dicata foro; / at quicumque nefas ausi, prohibente deorum / numine, polluerant pontificale caput, / morte iacent merita: testes estote, Philippi, / et quorum sparsis ossibus albet humus. / hoc opus, haec pietas, haec prima elementa fuerunt / Caesaris, ulcisci iusta per arma patrem.[1]
“Eu iria omitir o assassínio do príncipe, / quando do casto altar Vesta falou: / «Não hesites lembrá-lo: era meu sacerdote, / As sacrílegas mãos me apunhalaram. / O homem eu retirei; deixei u’a inane imagem / – foi a sombra de César que morreu». / No céu posto, ele vê os palácios de Júpiter, / e um templo dedicado tem no Fórum. / Mas os que ousaram – mesmo os deuses proibindo – / atingir a cabeça do pontífice / merecem morrer; testemunha-os Filipos, / e a terra esbranquiçada pelos ossos. / Essa obra e reverência Augusto fez primeiro, / e, numa guerra justa, vingou o pai.”[2]
[1] Ovídio – Os Fastos, III – vv. 701-710.
[2] Ovídio – Os Fastos – tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, Autêntica CLÁSSICA.
ATTIS
As festividades em honra de Átis ocorriam entre os dias 15 e 27 de Março. Das celebrações faziam parte uma série de ritos e cerimónias, entre os quais a dramatização dos acontecimentos da vida do deus.
No dia 15 de Março havia uma procissão, que recordava o nascimento do pequeno Átis, até às margens de um rio, onde o menino era colocado num canavial, no qual se tinha escondido até atingir a idade adulta. A este, seguia-se o ritual de fertilidade com o sacrifício de um touro.
Após uma semana de abstinência e contenção, no dia 23 de Março, tinha lugar a cerimónia da árvore. Então, cortava-se um pinheiro, representado Átis, e coberto de violetas era levado ao tempo de Cíbele, como se de um cortejo fúnebre se tratasse entre lamentos e choros.
No dia seguinte, dia 24 de Março, os Galli, sacerdotes eunucos de Cíbele, mutilavam-se em sangrentas feridas e castravam os jovens iniciados a sacerdotes. Durante a noite havia, então, um velório fúnebre e ao nascer do dia seguinte, 25 de Março, o Archigallus, o sacerdote supremo de Cíbele, anunciava a ressurreição do deus e a salvação para os jovens iniciados, sendo este dia de manifestações de regozijo. O dia 26 era de descanso e contenção.
No dia 27 de Março, último dia das festividades, fazia-se uma procissão com o ídolo de Cíbele, levado num carro argênteo, até ao rio Almo[1], no qual se banhava procurando assim que o deus propiciasse a chuva e assegurasse a fertilidade dos campo.
“De acordo com as fontes antigas, e sintetizando as várias versões disponíveis, Átis seria em parte filho de Agdístis, um ser bissexuado que teria nascido do sémen de Zeus caído na terra e que teria sido castrado pelos outros deuses. Do membro genital amputado, teria nascido uma amendoeira, segundo umas versões, ou uma romãzeira, segundo outras. A filha de Sangário, um deus-rio da Frígia, teria então colhido uma amêndoa ou um bago de romã, que colocou no seio. Desse acto, nasceu Átis, por quem o(a) mesmo(a) Agdístis se enamorou obsessivamente, ao ponto de levar o jovem à loucura e a auto-castrar-se, em cima de um pinheiro. Na sequência dos ferimentos, Átis morreu e Cíbele, deusa que por ele também se tinha apaixonado, sepultou os membros do jovem, mas do sangue que dele tinha corrido nasceram, à volta do pinheiro, violetas. Segundo Ovídio, teria sido o pinheiro a forma em que o jovem se metamorfoseara”[2]
vos quoque, flexipedes hederae, venistis et una / pampineae vites et amictae vitibus ulmi (…) / et succincta comas hirsutaque vertice pinus, / grata deum matri, siquidem Cybeleius Attis / exuit hac hominem truncoque induruit illo.[3]
“Também vós viestes, heras de pés retorcidos, com vinhas / as suas parras, e os ulmeiros por vinhedos cobertos, (…) / e o pinheiro, de hirsuta copa arregaçada no topo, tão caro / à Mãe dos deuses, se é certo que Átis, o devoto de Cíbele, / por ele despiu a forma humana e endureceu no alto tronco.”[4]
Super alta vectus Attis celeri rate maria,
Phrygium ut nemus citato cupide pede tetigit,
adiitque opaca silvis redimita loca deae,[5]
CATULO, POEMA LXIII, vv.1-3
“Navegando Átis no alto mar, num barco rápido,
Quando pisou avidamente, com pé leve o bosque frígio
e chegou à região sombria da deusa, cingida de bosques.”
[1] Ribeira que atravessava a Via Ápia, junto à Porta Capena, onde por costume se fazia a lavatio, cerimónia de purificação.
[2] Nuno Simões Rodrigues, Narciso antes do espelho: o primeiro sentido do mito, in Congresso Internacional Olhares de Narciso: egotismo e alienação, Forma Breve – Revista de Literatura, n.º 17, Universidade de Aveiro, 2021.
[3] Ovídio, Metamorfoses, livro X, vv. 99-100; 103-105
[4] Ovídio, Metamorfoses, livro X, vv. 99-100; 103-105, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia, Lisboa, 2007.
[5] Catulo, Poema LXIII, vv. 1-3.
ARGEA
O rito cerimonial da procissão dos argivos é pouco claro, pois segundo o que se sabe, Numa consagrou entre 24 e 27 capelas, repartidas pelas partes da cidade antiga e que eram visitadas pelo povo de Roma entre os dias 16 e 17 de Março.
Itur ad Argeos (qui sint, sua pagina dicet) / hac, si commemini, praeteritaque die.[1]
“Procissão dos argeus – que terá sua página – / será, se bem me lembro, no outro dia.”[2]
Argeos dictos putant a principibus, qui cum Hercule Argivo venerunt Romam et in Saturnia subsederunt. E quis prima scripta est regio Suburana, secunda Exquilina, tertia Collina, quarta Palatina.[3]
Pensa-se que o nome argeos, nos primórdios, se refere aos quais vieram para Roma com Hércules argivo, e se estabeleceram em Saturnia[4]. E destas regiões, a primeira é apelidada de Suburana, a segunda Esquilina, a terceira Colina e a quarta Palatina.
[1] Ovídio – Os Fastos, Livro III– vv. 791-792.
[2] Ovídio, Os Fastos, tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, Autêntica CLÁSSICA.
[3] Marcus Terentius Varro, De Lingua Latina, Liber V.45.
[4] Saturno, destronado por seu filho Zeus, refugiou-se no Lácio, tendo feito prosperar esta região e ensinando aos povos que aí habitavam a agricultura.
LIBERALIA

Liber pater e Libera[1]
No dia 17 de Março, celebravam-se os liberalia em honra do deus Líber, para pedir a sua protecção para com as plantações e propiciar a fertilidade. O ritual era conduzido por mulheres anciãs que, com a cabeça coroada de heras, percorriam as ruas e vendiam aos que passavam os liba, pequenos bolos consagrados aos deuses. Do bolo comprado era retirado um pequeno pedaço e colocado num depositário sagrado. O bolo era ingerido na rua, junto de sua casa.
Neste mesmo dia os jovens que atingiam a idade adulta e tomavam a toga virillis e o jovem cidadão ofereciam um sacrifício à deusa Juventas.
Tertia post Idus lux est celeberrima Baccho: / Bacche, fave vati, dum tua festa cano. (…)
ergo ut tironem celebrare frequentia possit, / visa dies dandae non aliena togae.[2]
“Teiceiro dia apó ao Idos é de Baco. / Me inspira, Baco: eu canto as tuas festas (…)
De dar a toga, assim, foi escolhido o dia, / p’ra multidão também o celebrar.”[3]
[1] A pintura de Liber Pater, reconhecível por sua coroa castelada, o galho em suas mãos e seus sapatos, e Libera, na fachada de um edifício em Pompeios, Museu Arqueológico Nacional. Nápoles. Itália.
[2] Ovídio – Os Fastos, Livro III– vv. 713-714; 787-788.
[3] Ovídio, Os Fastos, tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, Autêntica CLÁSSICA.
ARMILVSTRIVM
O Armilustrium era a festa da purificação das armas e acontecia a 19 de Março e a 19 de Outubro. Coincidia, portanto, com os meses em que se iniciavam as campanhas militares e quando terminavam. O culto correspondia a uma festividade com sacrifícios de consagração e purificação das armas, acompanhados de danças guerreiras e que ocorriam no monte Aventino, num local designado por Armilústrio.
Armilustrium ab eo quod in Armilustrio armati sacra faciunt, nisi locus potius dictus ab his; sed quod de his prius, id ab ludendo aut lustro, id est quod circumibant ludentes ancilibus armati.[1]
‘O armilustrium deve o seu nome ao lugar onde os soldados celebram os jogos sagrados, no Armilústrio, a não ser que o lugar tenha o seu nome por causa dos jogos; mas, qualquer que seja a origem, o nome deriva de jogar (divertir-se) ou de purificação, e isto porque os homens armados com escudos faziam círculos dançando.’
[1] Marcus Terentius Varro, De Lingua Latina, Liber VI.22.
QVINQVATRIA

Mosaico dos gladiadores – Zliten, Líbia, Museu Arqueológico de Trípoli
Entre os dias 19 e 23 de Março os artesão e detentores de outras profissões e artes celebravam-se as Quinquatria[1] festividades em honra de Minerva. O ritual era muito familiar, no qual se trocavam presentes e se celebrava o Equinócio da Primavera, bem como o ritual do renascimento das mulheres. No final da República, o primeiro dia era consagrado à deusa Minerva e à celebração do seu nascimento. Era um dia de purificação, de oferta de flores, bolo e sal, no qual não havia lugar ao derramamento de sangue. Nos dias seguintes, havia combates de gladiadores
Vna dies media est, et fiunt sacra Minervae, / nomina quae iunctis quinque diebus habent. / sanguine prima vacat, nec fas concurrere ferro: / causa, quod est illa nata Minerva die. / altera tresque super rasa celebrantur harena: / ensibus exsertis bellica laeta dea est.[2]
“Um dia mais e chega a festa de Minerva, / cujo nome – as Quinquátrias – vem dos dias. / No primeiro, não há sangue ou luta com ferro, pois Minerva nasceu naquele dia. / No seguinte e mais três[3], os jogos são na areia, / co’as espadas se alegra a deusa bélica.”[4]
Quinquatrus: hic dies unus ab nominis errore observatur proinde ut sint quinque; dictus, ut ab Tusculanis post diem sextum Idus similiter vocatur Sexatrus et post diem septimum Septimatrus, sic hic, quod erat post diem quintum Idus, Quinquatrus.[5]
Quinquatrus: aqui chamado de um dia, verifica-se por causa do erro do nome, que se considera como cinco; assim como é chamado de Sexatrus, o sexto dia após os Idus pelos habitantes de Túsculo, e Septimatrus, o sétimo dia após os Idus; assim aqui, este dia chama-se Quinquatrus, porque era o quinto dia após os Idos.
[1] As festividades designadas por Quinquatrus ocorriam no 5.º dia após os Idos de Março, portanto no dia 19. Ora parece ter havido um equívoco relativamente ao nome dado a estas festividades, pois acredita-se que se trate de um festival de 5 dias e não do 5.º dia após os Idus.
[2] Ovídio – Os Fastos, Livro III– vv. 713-714; 787-788.
[3] Dias 20 a 23 de Março.
[4] Ovídio, Os Fastos, tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, Autêntica CLÁSSICA.
[5] Marcus Terentius Varro, De Lingua Latina, Liber VI.14.
VIOLARIA

As Violaria eram festividades celebradas no dia 22 de Março, em honra dos mortos e cujo ritual consistia na visita e colocação de violetas nas necrópoles Romanas. O culto enquadra-se nas festividades privadas dos cidadãos Romanos e este ritual de cuidar da memória dos mortos fazia-se na primavera com violetas. Estas festividades faziam parte da extensa prática religiosa privada dos Romanos, nomeadamente o culto dos mortos, revelador dos valores da família e da tradição.
[1] Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa