Manifesto
A cultura greco-latina constitui, a par da tradição judaico-cristã, a base da cultura ocidental. No decurso dos séculos, outros contributos se lhe vieram juntar, como os das culturas árabe, chinesa, africana, americana, a ponto de se tornar legítimo hoje falar de uma cultura planetária de fundamento greco-latino-cristão, mas a matriz essencial – nunca será demais reafirmá-lo – mantém-se a que nos foi legada por gregos e romanos.
Recordemos, a propósito, como síntese particularmente feliz, as seguintes palavras de Roberto Carneiro, proferidas no Congresso Internacional “As Humanidades Greco-Latinas e a Civilização do Universal”, realizado em Coimbra, no já longínquo ano de 1988:
«A grande herança recebida pelos países românicos que foram a Paideia grega e depois a cultura romana, que daquela desabrochou como uma das suas ramadas mais férteis, não só marcou e personalizou a Europa latina, constituindo a matriz de uma civilização onde se enxertaram vigorosamente os valores espirituais e morais do cristianismo, como se expandiu por todo o continente europeu e, mais tarde, viajando nas caravelas dos navegadores portugueses, espanhóis e de outros povos do mesmo continente, estabeleceu diálogo com as civilizações e nações de todo o mundo.»
Da Grécia antiga (donde, segundo palavras de Fernando Pessoa nas Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, «se vê o mundo inteiro, o passado como o futuro, a tal altura emerge, dos menores cumes das outras civilizações, o seu alto píncaro de glória criadora») e de Roma, herdámos a literatura, a mitologia, a filosofia, a ciência, o direito, as ideias políticas, as ideias religiosas, as concepções estéticas, os valores de cidadania, os valores humanísticos, as línguas românicas, derivadas do latim, e o poderoso influxo do grego nestas mesmas línguas, e do grego e do latim nas línguas europeias de origem anglo-saxónica – tudo isto, em conjunto com uma enorme herança material no domínio da arte, da engenharia e da arquitectura.
Trata-se de um património material e imaterial imenso, que é necessário conhecer e preservar, de forma a que se torne actuante no mundo de hoje, em que se verifica uma progressiva desumanização, uma preocupante perda de valores, aqueles valores perenes e universalistas que a Antiguidade cultivou e nos deixou como herança. Com efeito, tais valores, como advertia Roberto Carneiro no congresso acima referido, «não devem ser encarados unicamente como motivo de cultura, de estudo, de procura da nossa identidade, eles tornam-se tanto mais importantes, quanto parecemos tentados, nos dias de hoje, a deixar que nos aconteça uma forma de civilização baseada quase exclusivamente em pressupostos materiais, económicos e técnicos».
A cultura portuguesa, que faz parte da europeia mas foi enriquecida no diálogo com as nações e as culturas que fomos encontrando no processo da expansão, enraíza-se na greco-latinidade, com a envoltura judaico-cristã. Portugal, como se sabe, foi forja de grandes humanistas e, no passado, como no presente, grandes escritores beberam no manancial greco-latino as águas da inspiração poética, sendo em alguns casos, como o de Camões, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Miguel Torga, praticamente impossível compreender a respectiva obra poética na sua globalidade e profundeza sem os instrumentos que o conhecimento da cultura greco-latina proporciona.
A Vénus de Os Lusíadas favorece a gente Lusitana não só por nela encontrar as mesmas qualidades da «antiga tão amada sua Romana», mas porque com pouca corrupção crê que é a latina a língua falada pelos portugueses.
Talvez hoje Vénus, a poderosa deusa do amor, essa força universal que tudo move, não se sinta tão inclinada a favorecer os portugueses – justamente pelas razões inversas às que Camões invoca. De facto, nas últimas décadas, temos assistido a uma progressiva desvalorização dos estudos clássicos, numa senda oposta à propugnada por Roberto Carneiro, ministro da educação na altura da realização do importante Congresso acima referido. O ensino do latim e do grego recuou para números confrangedoramente reduzidos, tanto no ensino secundário como no ensino superior. E a língua portuguesa apresenta-se cada vez mais desfigurada, quer por influências exógenas, quer pela introdução de uma norma gráfica que afasta a escrita da matriz greco-latina, fazendo tábua rasa da ciência lexical e etimológica.